Multiplicidade de atores no Brasil: um desafio à facilitação do transporte de mercadorias no comércio internacional

Michelle Vieira de Almeida
O Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC), adotado pelos membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 7 de dezembro de 2013, foi promulgado no Brasil por meio do Decreto nº 9.326, de 3 de abril de 2018 [1]. A facilitação de comércio abrange a simplificação e harmonização de procedimentos e a convergência regulatória de normas aduaneiras e de fiscalização. Essas medidas buscam reduzir a burocracia, custos de transação e tempo gasto pelos operadores envolvidos no comércio internacional [2].

O artigo 11 do AFC versa sobre a liberdade de trânsito entre países. O parágrafo 17 desse artigo prevê que “cada Membro envidará esforços para nomear um coordenador nacional de trânsito, ao qual todos os questionamentos e propostas de outros Membros relativos ao bom funcionamento das operações de trânsito possam ser endereçados”. Não é possível, entretanto, precisar quais países atendem a essa orientação, uma vez que Angola e Cuba foram os únicos países a comunicarem ao Comitê de Facilitação do Comércio da OMC os contatos de seus coordenadores nacionais de trânsito até o momento [3].

No Brasil, ainda não se tem publicizado os coordenadores nacionais de trânsito, mas o ponto de contato para as questões de facilitação do comércio é a Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), órgão aduaneiro subordinado ao Ministério da Fazenda [4]. A RFB é um dos órgãos que integram o Comitê Nacional de Facilitação do Comércio (Confac), órgão consultivo e executivo criado em 2016 [5], e instituído novamente pelo Decreto nº 10.373, de 26 de maio de 2020 [6], em consonância à determinação do artigo 23.2 do AFC.

Dentre as competências do Confac estão: facilitar a coordenação, a harmonização das atividades operacionais dos órgãos e da Administração Pública Federal relacionadas com importação e exportação; favorecer a coordenação doméstica para a implementação do AFC; e promover inciativas de parceria e cooperação com órgãos e entidades públicas ou privadas, em temas relacionados à facilitação e à desburocratização do comércio exterior  [7].

Integram o Confac o Subcomitê de Cooperação e as Comissões Locais de Facilitação do Comércio. O Subcomitê de Cooperação tem como objetivo “identificar pontos de ineficiência em trâmites processuais, procedimentos, formalidades, exigências ou controles relativos ao comércio exterior de bens e serviços e propor soluções para esses pontos, por meio da cooperação e da colaboração entre as partes interessadas”. Dentre seus convidados permanentes está a Confederação Nacional do Transporte (CNT) [8].

As Comissões Locais de Facilitação do Comércio têm como objetivo “promover a discussão de propostas de aprimoramento dos procedimentos relativos à exportação, à importação e ao trânsito de mercadorias e da participação colaborativa nos processos de implementação de medidas e de iniciativas de facilitação do comércio, entre intervenientes em comércio exterior e órgãos e entidades públicos” [9].
Apesar do artigo 11, parágrafo 16, do AFT prever que a cooperação e coordenação entre os países membros incluirá o entendimento sobre taxas, formalidades e requisitos legais, e o funcionamento prático dos regimes de trânsito, nenhuma autoridade de transporte ou trânsito integra o Confac de forma permanente.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) é uma autarquia federal ligada ao Ministério dos Transportes e uma das autoridades do Brasil nesta matéria. Segundo a Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001, estão entre as atribuições da ANTT habilitar o transportador internacional de cargas, fiscalizar a prestação do serviço de transporte internacional de cargas e acompanhar as atividades dos operadores estrangeiros que atuam no transporte internacional com o Brasil, visando a identificar práticas operacionais, legislações e procedimentos, adotados em outros países, que restrinjam ou conflitem com regulamentos e acordos internacionais firmados pelo Brasil [10]. A ANTT também representa o país no Subgrupo de Trabalho n° 5 (SGT nº 5) “Transporte” do Grupo Mercado Comum (GMC) - Mercosul [11] e nas reuniões da Comissão de acompanhamento do Acordo sobre Transporte Internacional Terrestre (Comissão do Artigo 16 do ATIT [12]).

O Ministério das Relações Exteriores, por sua vez, além de integrante do Confac, representa o Brasil no Subgrupo de Trabalho n° 18 (SGT n° 18) “Integração Fronteiriça” [13] e no Subgrupo de Trabalho n° 14 (SGT n° 14) “Infraestrutura Física” do GMC - Mercosul [14], os quais também guardam relação com o transporte internacional de cargas.

O comércio internacional, portanto, é tema que dialoga com as atribuições de diversas instituições públicas e privadas no Brasil na matéria de transporte. Essa complexidade se torna ainda maior se considerada a grande extensão do território e das fronteiras do país. O diálogo e o alinhamento entre os diferentes atores são fundamentais e o Confac se mostra um foro com potencial para promover essa integração, seja através do Subcomitê de Cooperação, seja através da instauração de grupos de trabalho temporários. É necessário, entretanto, expandir os órgãos e instituições que participam das discussões no comitê.

A troca de informações, integração de sistemas, harmonização e racionalização de dados poderiam servir como um impulso para a coordenação e a cooperação interna entre os órgãos e entidades do governo brasileiro que atuam nas fronteiras e nas operações de comércio exterior [15]. A comunicação interinstitucional e a construção de planos de trabalho que abranjam ações coordenadas e estratégicas também são essenciais para que o desafio imposto pela multiplicidade de atores seja superado no Brasil, possibilitando a plena implementação do AFT e o desenvolvimento mais eficiente do comércio internacional.

Michelle Vieira de Almeida

Michelle Vieira trabalha no serviço público brasileiro desde 2011, tendo atuado nas áreas de Medicina Veterinária Preventiva, Saúde Pública, Saúde Suplementar e Transportes. Atualmente é Técnica em Regulação na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), lotada na Gerência de Planejamento, Desenvolvimento e Desempenho da Fiscalização.

É aluna no Mestrado em Gestão e Políticas Públicas do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP) e egressa do Mestrado em Medicina Veterinária da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

Michelle Vieira é filha de Solange Vieira e neta de Dejanira e Ernesto.



Bibliografia:

[1] BRASIL. 2018. Decreto nº 9.326, de 3 de abril de 2018. Promulga o Protocolo de Emenda ao Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio, adotado pelo Conselho-Geral da Organização Mundial do Comércio, em 27 de novembro de 2014, e seu anexo, o Acordo sobre a Facilitação do Comércio, adotado pelos membros da Organização Mundial do Comércio, em 7 de dezembro de 2013. Diário Oficial da União, 04/04/2018, Edição: 64, Seção: 1, Página: 3. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/d9326.htm>. Acessado em 24 de março de 2023.

[2] THORSTENSEN, Vera; SILVA, Gustavo Jorge. Facilitação de Comércio: 2020. OMC, Acordo Mercosul-UE e USMCA. In: Vera Thorstensen; Thiago Nogueira. (Org.). O Brasil entre União Europeia e Estados Unidos: uma leitura comparada das regulações da OMC e textos do Mercosul-UE e USCMA. 1ed.São Paulo: VT Assessoria Consultoria e Treinamento Ltda., v. 1, p. 63-79.

[3] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. 2023. Trade Facilitation Agreement Database. Disponível em <https://tfadatabase.org/en/documents/search>. Acessado em 24 de março de 2023.

[4] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO. 2023. Trade Facilitation Agreement Database. Disponível em <https://www.tfadatabase.org/en/members/brazil/contact-points>. Acessado em 24 de março de 2023.

[5] BRASIL. 2016. Decreto nº 8.807, de 12 de julho de 2016. Altera o Decreto nº 4.732, de 10 de junho de 2003, que dispõe sobre a Câmara de Comércio Exterior - CAMEX, e o Decreto nº 4.993, de 18 de fevereiro de 2004, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 12/07/2016, Edição Extra, p. 1. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/d8807.htm>. Acessado em 26/03/2023.

[6] BRASIL. 2020. Decreto nº 10.373, de 26 de maio de 2020. Institui o Comitê Nacional de Facilitação do Comércio e altera o Decreto nº 9.745, de 8 de abril de 2019. Diário Oficial da União, 27/05/2020, Edição 100, Seção 1, Página 98. Disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.373-de-26-de-maio-de-2020-258706551>. Acessado em 23 de março de 2023.

[7] BRASIL. 2022. Resolução GECEX nº 377, de 20 de julho de 2022. Aprova o Regimento Interno do Comitê Nacional de Facilitação do Comércio - Confac. Diário Oficial da União, 22/07/2022, Edição 138, Seção 1, Página 51. Disponível em <https://www.in.gov.br/En/web/dou/-/resolucao-gecex-n-377-de-20-de-julho-de-2022-417056580>. Acessado em 27/03/2023.

[8] BRASIL. 2022. Resolução GECEX nº 377, de 20 de julho de 2022. Aprova o Regimento Interno do Comitê Nacional de Facilitação do Comércio - Confac. Diário Oficial da União, 22/07/2022, Edição 138, Seção 1, Página 51. Disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-gecex-n-377-de-20-de-julho-de-2022-417056580>. Acessado em 27/03/2023.

[9]  BRASIL. 2020. Decreto nº 10.373, de 26 de maio de 2020. Institui o Comitê Nacional de Facilitação do Comércio e altera o Decreto nº 9.745, de 8 de abril de 2019. Diário Oficial da União, 27/05/2020, Edição 100, Seção 1, Página 98. Disponível em <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.373-de-26-de-maio-de-2020-258706551>. Acessado em 23 de março de 2023.


[10] BRASIL. 2001. Lei nº 10.233, de 5 de junho de 2001. Dispõe sobre a reestruturação dos transportes aquaviário e terrestre, cria o Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte, a Agência Nacional de Transportes Terrestres, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários e o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 06/06/2001, Seção 1, Página 1. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10233.htm>. Acessado em 24 de março de 2023.

[11] Grupo Mercado Comum - MERCOSUL. 2014. Decisão MERCOSUL/CMC/DEC. nº 24/14. Estrutura do Grupo Mercado Comum e Tipologia de seus Órgãos Dependentes. Disponível em <https://www.mercosur.int/pt-br/documentos-e-normativa/normativa/>. Acessado em 26/03/2023.

[12] ALADI. 2019. Transporte. Acordo Sobre Transporte Internacional Terrestre – ATIT. Disponível em <http://www2.aladi.org/sitioAladi/facilitacionComercioTransporteATITp.html>. Acessado em 27/03/2023.

[13] Grupo Mercado Comum - MERCOSUL. 2015. Resolução MERCOSUL/GMC/RES. n° 59/15. Subgrupo de Trabalho sobre Integração Fronteiriça. Disponível em <https://www.mercosur.int/pt-br/documentos-e-normativa/normativa/>. Acessado em 26/03/2023.

[14] Grupo Mercado Comum - MERCOSUL. 2022. Resolução MERCOSUL/GMC/RES. n° 17/22. Subgrupo de Trabalho nº 14 “Infraestrutura Física”. Disponível em <https://www.mercosur.int/pt-br/documentos-e-normativa/normativa/>. Acessado em 26/03/2023.

[15] LAHUD, Leonardo Diniz. 2018. Facilitação de comércio: passado, presente e a facilitação 2.0. 2018. 30 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Relações Internacionais) - Universidade de Brasília, Brasília. Disponível em <https://bdm.unb.br/handle/10483/24337>. Acessado em 27/03/2023.


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